Alpinismo

Escalada em Gelo

 

Um desporto extremo

por Francisco Silva e Paulo Alves

escalada em gelo é uma modalidade do alpinismo que tem sofrido um forte desenvolvimento nos últimos 20 anos. Não há qualquer dúvida que é um desporto exigente e relativamente perigoso, que obriga a conhecimentos técnicos avançados, inclusive sobre as condições do gelo e o efeito da meteorologia, bem como uma boa preparação física e psicológica.

Os potenciais praticantes deste desporto necessitam, antes de mais, de se consciencializar que os riscos inerentes à prática desta modalidade são elevados e nem sempre facilmente controláveis: as ancoragens podem não ser tão seguras como seria de desejar, as quedas são problemáticas, os locais de escalada são frequentemente de difícil acesso, existe grande exposição a quedas de blocos e a avalanches e o próprio gelo pode quebrar quando menos se espera. A estes factores ainda há a acrescentar a imponderabilidade das condições meteorológicas e o frio.

Mas nem tudo são inconvenientes. Trata-se de um desporto muito cativantepropício à aventura e que permite que o alpinista adquira importante experiência na progressão em terreno difícil de montanha.

Infelizmente em Portugal, ou nas proximidades, não existem muitas condições para a prática da escalada em gelo e, quando existem, resumem-se a ocasiões em geral pontuais durante poucos meses por ano, sendo essencial obter informações muito precisas junto de quem está no terreno e sobre a meteorologia local. Mas, por outro lado, isso pode constituir uma motivação acrescida e renovada todos os anos, na época em que a Serra da Estrela ou Gredos se cobrem de branco.

Com a facilidade actual de viajar para outras zonas da Europa não faltam destinos fantásticos para escalar em gelo, como é o caso dos Alpes (Fournel, Cogne, La Grave), Gavarnie, Escócia, Noruega, etc.

Equipamento

por Francisco Silva e Paulo Alves

O equipamento necessário para a escalada em gelo inclui o arnês e capacete, e mais algum material específico para esta modalidade, destacando-se os crampons de pontas, as botas rígidas, os piolets curtos, a corda e os pitons de gelo. Recomenda-se ainda levar equipamento para resgate expedito, tal como cordeletaspequenos bloqueadores e mesmo uma roldana.

Nos últimos anos o equipamento e os métodos de treino tem evoluído rapidamente, permitindo aumentar a performance, conforto e segurança dos escaladores. Sem dúvida que uns crampons muito técnicos e uns piolets de última geração constituem uma mais-valia importante, mas é necessário ter consciência que o grau de tecnicidade do equipamento apenas é determinante caso se pretenda fazer escalada a um nível elevado.

Como se trata de equipamento caro, recomenda-se que o praticante experimente algum material antes de o adquirir, emprestado ou disponível em alguns encontros internacionais de escalada (Ecrins, Marmolada, Bonneval, Rjukan, Ouray, etc), ou que contacte outros praticantes, e ainda lendo as recomendações por exemplo de Will Gadd (livro existente na nossa biblioteca).

Equipamento necessário

  • Arnês, de tamanho que permita o uso sobre roupa espessa.
  • Capacete, de tamanho que permita o uso de gorro ou buff na cabeça, e de preferência modelo com viseira (reduz hipótese de ferimentos na face provocados por fragmentos de gelo). Ao contrário do uso em rocha, em que é raro ser atingido por uma pedra, o capacete no gelo está constantemente a ser atingido por fragmentos.
  • Botas rígidas, de cabedal ou de plástico.
  • Corda dupla, sempre com especificação dry, com duas cordas de igual comprimento (2 de 50m, havendo quem recomende comprimento até 70 m). Há também a opção de corda única bicolor com pelo menos 100 m mas actualmente é pouco comum.
  • Dois piolets técnicos para escalada em gelo, portanto curtos e em geral com cabo curvo, disponíveis em duas opções: com fita rápida (dragone) para ligar ao pulso, fita esta que se pode tirar, ou sem dragone, portanto sem ligação ao pulso. Esta opção depende do nível técnico do escalador e do objectivo de escalada. A primeira opção, piolets com dragone rápida de pôr e tirar será a mais polivalente até o escalador atingir um nível elevado que até o motive a ter os dois tipos de piolet. Outra opção a recomendar é recorrer a fita elástica em V, ligando os dois piolets ao arnês, de forma a reduzir a hipótese de deixar cair o piolet, mesmo que não use dragone. Um dos piolets deve ser martelo-piolet.
  • Crampons, sendo os mais comuns os de duas pontas frontais. Os monopontas são mais adequados para escalada em gelo fino ou muito delicado. Crampons técnicos com duas pontas à frente serão mais recomendáveis para quem se inicia na modalidade, até porque são polivalentes, ao contrários de crampons com pontas verticais ou apenas com uma ponta frontal. Convém verificar ao comprá-los se se fixam bem nas botas.
  • Polainas – úteis para evitar entrar neve nas botas, mas igualmente para apertar as calças aumentando a visibilidade sobre os crampons e evitando que estes rasguem as calças. Há opção entre polainas altas, que provocam maior condensação interior, ou modelo reduzido, mais baixo, ou mesmo apenas o elástico inferior nas calças. Nas condições de mais humidade, neve pouco fria e espessa, convirá optar por polainas altas.
  • 8 a 12 pitons de gelo por cordada, dependendo da necessidade de utilizar quatro nas reuniões (dois em cada uma); os modelos com pega para enroscar facilitam a sua colocação no gelo. Vários escaladores são adeptos de levar também uma lâmina-piton (por exemplo, Spectre Black Diamond).
  • Porta-pitons Para transporte recomenda-se levar os pitons num mosquetão de plástico (Black Diamond Ice Clipper, ou Petzl-Caritool). Em alternativa levar um mosquetão fixo no lado direito do arnês (fixá-lo com fita adesiva) para transportar pitons de modo a ser fácil retirá-los só com uma mão.
  • Expressos de várias dimensões e fitas e cordeletas auxiliares, incluindo pelo menos uma longa (5 a 7 m) para montagem de reuniões. Algumas expressos deverão ser dissipadoras (shock absorber; fitas que rasgam parte das costuras, por efeito de uma força de choque de aproximadamente 5 KN, diminuindo entre 15 e 50% a força de choque exercida nas ancoragens, na restante cadeia de segurança e nos escaladores; são fundamentais em escalada em gelo por se utilizarem frequentemente ancoragens que não serão suficientemente resistentes).
  • Duas fitas grandes, por cordada, e diversas fitas médias. Devem ser levadas a tiracolo (mas sem enfiar na cabeça) unidas à frente com um mosquetão. Esta forma de transporte, permite usar facilmente a fita sem ter que a tirar pela cabeça.
  • Luvas compridas com palmas aderentes, de preferência com dedos, como as de ski, que podem ser conjugadas com um par de luvas finas. Se não fizer muito frio e a cascata não for muito comprida é aconselhável utilizar luvas relativamente finas que permitem manobrar com facilidade os mosquetões e o restante equipamento. Alguns escaladores usam luvas de neoprene. Levar um par de luvas suplente, pois é usual molharem-se e/ou outras para situações de frio extremo.
  • Algum material de segurança para escalada em rocha: friends, entaladores, pitons.
  • Diversos mosquetões, com e sem segurança.
  • Como hipótese, embora em desuso, levar um piolet ou martelo-piolet suplementar (representa um aparelho suplente, caso alguém no grupo perca o piolet, ou parta uma lâmina).
  • Outro material individual: descensor, ascensor (tipo tibloc ou ropemen), placa mágica, etc.
  • Consoante as opções pessoais, prever “longe” ligada ao arnês para autosegurança, com dois comprimentos de utilização possível, ou outro sistema.
  • Como as melhores zonas de gelo se localizam em encostas sujeitas a avalanches, é muitas vezes de prever a necessidade de levar equipamento de busca e resgate (ARVA-DVA, pá e sonda).
  • O vestuário depende muito das condições climatéricas o princípio básico é prever várias camadas sobrepostas, variáveis consoante a situação e geridas sempre de forma a evitar molhar roupa com o suor (o que corresponde a desidratar e perder calor). A “primeira camada” pode ser usada sem mais nada durante a marcha de aproximação, vestindo as roupas mais quentes antes de começar a andar, depois ao chegar à base da escalada ou por quem fica na reunião. Em caso de muito frio, usar preferencialmente forro polar e, por fora, goretex. No entanto, é mais económico combinar um par de colans de primeira camada com calças de forro polar, por baixo de outras impermeáveis, com uma camisola interior mais um casaco forro polar e um impermeável; consoante o frio, um bom duvet pode ser uma peça chave para ficar parado a fazer segurança. Acrescente-se um gorro fino (passa-montanha ou buff), sob o capacete. Embora as cascatas só se formem em condições de frio, devido ao calor gerado com a escalada nem sempre é necessário recorrer a roupa muito quente e a muitas camadas. Levar meias e luvas suplentes, para substituir outras que se molhem, inclusive com suor.
  • Óculos de montanha com fio.
  • Água ou bebida quente (num cantil ou frasco mas de boca larga, para ser mais fácil abril mesmo em caso de começar a congelar). É importante gerir bem a alimentação, também com alguns produtos fáceis de usar mesmo durante o esforço (barras, gel), pois é uma condição que facilita uma boa prestação desportiva e contribui para não arrefecer.
  • Outros: estojo de primeiros socorros, creme solar, frontal, máquina fotográfica, bússola, mapa, gps, cobertura de sobrevivência, abrigo de emergência, isqueiro ou fósforos, binóculos.
  • Levar para o refúgio ou no carro, um alicate, uma lima, as chaves dos crampons e piolets e eventualmente uma lâmina suplente.

Nota: Atenção ao estado do material: os piolets e crampons devem estar bem afiados e os pitons em bom estado e limpos de gelo.

Segurança e Risco

por Francisco Silva

Os potenciais praticantes da Escalada em Gelo necessitam, antes de mais, de se consciencializar que os riscos inerentes à prática desta modalidade são elevados e por vezes de difícil controle: as ancoragens nem sempre são tão seguras como seria de desejar, as quedas são problemáticas, incluindo a possibilidade de espetar no corpo um crampon ou um piolet, os locais de escalada são frequentemente de difícil acesso, existe grande exposição a quedas de blocos e a avalanches e o gelo pode quebrar quando menos se espera. É fundamental avaliar muito bem as condições e as decisões a tomar, não havendo grande espaço para erros.

Para escalar em gelo é recomendável estar em boa forma física, mas o factor psicológico é igualmente importante.

O medo é um dos principais perigos na escalada em gelo, mas também pode ser um alerta que pode salvar a vida ao escalador. A fase final antes de chegar à próxima reunião é muitas vezes delicada, devido ao cansaço e à pior qualidade do gelo no fim dos troços verticalizados. Evitar o pânico e, em caso de grande insegurança, cravar bem um piolet, fazer autosegurança a ele e colocar um piton. Se necessário, fazer uma reunião e pedir ao companheiro de cordada para escalar à frente. Por vezes, é mesmo preferível desistir da escalada.

Escalar com calma, mas sem ser lento, utilizar a cabeça, não estar tenso e racionalizar as forças. Procurar posições de descanso e controlar a respiração.

Avisar o companheiro instalado na reunião da quebra e queda de blocos de gelo particularmente perigosos para ele.

Escolher os locais de reunião de forma a não estarem directamente por baixo do troço seguinte a escalar, de forma a reduzir a queda de fragmentos de gelo sobre o companheiro que aí fica a fazer segurança.

Avaliar bem as condições do gelo e a exposição à queda de blocos e avalanches antes de começar a escalar. Se a cascata apresentar condições duvidosas, não iniciar a escalada, pois decidir depois descer pode ser complicado e perigoso.

Caso haja outras cordadas na via que se pretende realizar, é preferível escolher outra ou então iniciá-la apenas quando já não há risco de queda de blocos provenientes dos outros escaladores.

Para diminuir significativamente a probabilidade de ocorrer um acidente é fundamental:

  • Avaliar as condições do gelo;
  • Não teimar em entrar numa via de gelo que não esteja em boas condições apenas por ser o projecto de escalada há muito tempo pretendido;
  • Escolher uma via que esteja adequada aos nossos conhecimentos técnicos e capacidades físicas e psicológicas;
  • Avaliar as condições meteorológicas;
  • Ter atenção à facilidade de acesso à via e especialmente à de saída no fim, estudando bem os itinerários;
  • Utilizar os equipamentos adequados. “O equipamento não faz o escalador”, mas pode facilitar bastante a progressão e diminuir significativamente os riscos;
  • Ter formação adequada e prática regular.

Graduação

por Francisco Silva

Em escalada em gelo é utilizado um sistema de dupla entrada para cotar as vias: grau de envolvimento, associado ao risco/exposição e dificuldade técnica.

  • O grau de envolvimento (I a VII), inclui a localização e acesso, o comprimento, continuidade, exposição, equipamento e descida.
  • Grau técnico (1 a 7). Cotação do troço ou largo mais duro, tendo em conta a continuidade, possibilidade de colocação de seguranças e a espessura/resistência – qualidade do gelo.

Esta graduação pode ser precedida de siglas que indiquem qual o tipo de formação das paredes de gelo:

  • WI – Water Ice, cascatas geladas que só se formam nas épocas frias
  • AI – Alpine Ice, paredes sempre gelados em alta montanha, nos glaciares (crevasses, rymaias e frentes de glaciar) e pendentes sempre geladas.

Grau de envolvimento

  • I Escalada curta, junto à estrada, reuniões equipadas e descida fácil.
  • II Mesmas características mas com um ou dois largos de corda.
  • III Longa marcha de aproximação, diversos largos, algumas horas de escalada.
  • IV Aproximação invernal dura, exposta a avalanches e a queda de pedras.
  • V Longa escalada numa face de alta montanha, exposta ao mau tempo e a avalanches e outros riscos.
  • VI Face alpina só possível de escalar num dia pelos melhores alpinistas, risco muito elevado.
  • VII Diversos dias de escalada, numa face alpina, muito exposta, em condições invernais extremas, com elevado risco.

Grau técnico (o mais utilizado)

  • 1 Passeio sobre o gelo com crampons.
  • 2 Um largo a 60° com gelo de boa qualidade, com curtas passagens mais abruptas.
  • 3 Entre os 60 e 70° de gelo espesso e sólido. Pode ter pequenas passagens verticais, mas com plataformas que facilitam a colocação de material em bom gelo.
  • 4 75/80° com uma secção vertical (4 a 8 metros).
  • 5 Um largo (± 25 m) a 85/90°, bom gelo com pequenas plataformas para os pés.
  • 6 Reunião suspensa, com um largo a 90°, com raros pontos de repouso. Inconsistência do gelo e/ou das ancoragens.
  • 7 Completamente vertical, geralmente gelo muito fino e/ou medíocre, com protecção difícil ou impossível. Gelo técnico, formações delicadas, onde nada pode falhar. Uma perfeita loucura ou pesadelo!

Para escaladas mistas é comum combinar-se o grau de escalada em gelo com o de rocha, por exemplo 6b WI 5.

Glossário e Bibliografia

 

Glossário da Escalada em Gelo

Abalakov
Dois furos no gelo interligados de forma a poder passar-se uma cordeleta, utilizado como ponto de ancoragem para rapelar.

Circo
Grande depressão da montanha em forma de anfiteatro, geralmente de plano semicircular como uma bacia, formado pela grande acumulação de neve que dá origem a uma secção de um glaciar.

Crevasse
Fissura profunda na superfície de um glaciar.

Dry tooling
Escalada em gelo muito fino e ocasionalmente em gelo/rocha, ou mesmo só em rocha (lâmina entalada em fendas, ou em pequenissimos degraus).

Dragonne
Fita regulável dos piolets, de preferência associada a um elástico.

Rimaya ou Bergschrund
Grande fenda no glaciar na parte superior de um circo, que separa a calote de gelo do glaciar do incício da parede rochosa ou de uma secção do glaciar “colada” à cabeceira do circo.

Shock absorber
Um tipo de fita-expresso que apresenta a particularidade de possuir costuras que rompem por efeito de uma força de choque de aproximadamente 5 KN, diminuindo assim gradualmente a força de choque entre 15 e 50%.

Alguns links e bibliografia
Will Gadd – Ice & Mixed Climbing: modern technique. The Mountaineers Book 2003  // Escalada en Hielo y Mixta: tecnica moderna. Ediciones Desnivel 2006, 216p.

Steve House e Scott Johnston – Training for the New Alpinism: A Manual for the Climber as Athlete. Ed. Patagonia 2018, 464p. / Entrenamiento para el Nuevo Alpinismo. Ed. Desnivel 2017, 432p.

Jeff Lowe – Ice World: Techniques and Experiences of Modern Ice Climbing. Ed. Mountaineers 1996, 256p. / El Mundo del Hielo. Ed. Desnivel 1997, 256p.

Mark Twight – Extreme Alpinism: Climbing Light, High, and Fast. Ed. The Mountaineers 1999, 240p. / Alpinismo Extremo. Ed. Desnivel 2002, 284p.

Pit Schubert – Seguridad y riesgo: vol.III – En roca y hielo. Ed. Desnivel 2007, 272p.

https://www.theuiaa.org/

https://www.petzl.com/INT/en/Sport/Ice-climbing

https://www.ukclimbing.com/news/activity/alpine/

http://willgadd.com/

https://www.climbing.com/news/steep-ice-skills-special/

Formação

 

Formações na Desnível

A oferta de formação em ALPINISMO da Desnível tem garantido a componente de INICIAÇÃO todos os anos (Nível 1), enquanto o Nível 2 (APERFEIÇOAMENTO, ou ALTA MONTANHA, ou o módulo GELO funcionam com menos frequência e consoante a disponibilidade de formadores e a procura, esta manifestada por contacto directo de praticantes.

As formações em Alpinismo N1 decorrem na Serra da Estrela e em Gredos, ou apenas em Gredos, enquanto o Nível 2 decorre em locais escolhidos caso a caso, ultimamente mais centrado em Gredos-Bejar e nos Pirinéus.

É frequente ser preparada uma formação em formato Estágio, quer com formador a acompanhar cordadas autónomas, quer reunindo praticantes em autonomia num maciço montanhoso; tem decorrido nas zonas de Chamonix, Ecrins, Zermatt, Dolomites.